domingo, 29 de agosto de 2010

A Linha


O nevoeiro da manhã cortina o dia que nasce. Esconde as fantasmagorias do viver a manhã fria da semana.
O cotidiano transcreve a vida dos comuns.
No quarto do apartamento a rotina emoldura a vida do casal. A banalidade corriqueira do relacionamento a dois. O processo mítico do enredo ensaiado das relações interpessoais.
Vivia dessa maneira Fernando e Raquel.
É uma trama trivial da insignificância da vida. Porém, desperta a curiosidade de terceiros para a trágica fatalidade do amor.
O amor é uma célula invisível que se multiplica na parede do destino infectando a racionalidade primaria do homem. A ira condensa em muralha mágica erguendo verdadeiras fortalezas impenetráveis.
Somos passageiros em busca de saída ou entrada secreta para o mundo maravilhoso do amado. Sutilmente, Fernando adentrou na vida de Raquel.
Paixão.
Desejo!
O cotidiano sendo escrito na linha bamba do destino. O amor colocou sua máscara e contracenou na vida de ambos.
O sexo sacro da comunhão entre o animalesco e o divino. Silêncio. O recorte do momento fotografado pela circunstância da vida.
Raquel alterada gritava sobre o relacionamento. Fernando gritava sobre o relacionamento. Uma constelação de ofensas eclodia no céu da sala.
Irritado e desenfreado o homem pegou seus pertences: uma mochila, uma chave de carro e o celular.
Palavras chave para um clímax romanesco de folhetins do século XVIII. Mas, a contemporaneidade não permitia tal cena. O infortúnio é a porta voz do momento. A crueldade urgiu nas sinaleiras verdes das ruas. Acelerando freneticamente o carro, Fernando, rompia todos os limites da ordem social. Neste instante as regras de sociabilidade são ignoradas.
O celular toca uma música de identificação instantânea da amada (Non, Je Ne Regrette Rien). 100km por hora. Coloquemos como aditivo a raiva momentânea. Pronto, tem um homem desorientado nas vieras da cidade. O olhar aguçado espreitando um lugar para estacionar. O celular vibrando como um corpo em convulsão.
Noutro lado da linha Raquel com um papel na mão aflita. A sala da casa traçou uma trilha cíclica de idas e vindas.
O homem na solidão urbana, estaciona o carro próximo ao beco escuro. Ha frente uma placa de identificação da rua.
Estende a mão.
Atende o celular.
O suspense das palavras pensadas e não expressadas. O murmúrio da voz de Raquel tocada em dó menor.
Estilhaçado o vidro do carro, um sujeito de capuz aponta uma arma para cabeça de Fernando, o movimento assustado, o grito da mulher ao telefone.
A cor vermelha pinta a tela daquele momento, e a voz da mulher pincelando a informação da gravidez. A surdez da morte instala-se naquele ato. O vulto adentra a escuridão urbana. E o corpo agonizando sob o volante.
Rebobinando a microfilmagem daquele romance. O inicio da discussão no apartamento e a tentativa da palavra contida por Raquel, terminou não sendo impressa na linha bamba da vida de Fernando.

(Alan Félix)

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Felicidade Secreta da Rainha

para Ohana

A felicidade para ela possui vozes secretas.
A catedral da felicidade tinha na fundação os amigos. Falava pouco, expressava menos ainda, mas vivia muito. O muito não significava quantidade, pois a quantificação era sinônimo de pouco na sua vida, e o pouco a deixava feliz.
A migalha de pequenos sorrisos simbolizava uma riqueza extrema. Tesouro que para outros não tinha valor algum. Mas aos seus olhos representava um montante, cujo valor compraria bens imateriais infindo.
Nunca tivera o amor da mãe. Em certos momentos causara dor, agonia e tristeza. Apesar disto, sempre andara saltitante pelas pedras esmigalhadas que chamava de caminho. Aos pouco as escolhas corriqueiras arrastavam para longe do lugar que familiarizava denominar casa.
As rotas coordenadas pelas decisões prematuras a levaram para geografias distantes. O longe comprimia as novas vivencias que aprendeu a engolir a seco. O que descia garganta abaixo arranhava o poço da laringe, causando rouquidão e soluços intermináveis para felicidade.
Vestia de farrapos cativantes de alegria, apresentava-se soberana perante os estranhos. Estrangeiros deformados que se tornavam amigos.
Captou os sonhos hermenêuticos que peregrinava no limbo da sua fantasia. Alegorias apaixonadas de vontades intrínsecas. A única bagagem que carregava estava repleta de garrancho escrito sobre a fadiga desventura que fora a vida.
Desencontrada no encontro do descobrimento próprio, esforçou-se em catar os farelos de oportunidade que o novo habitat proporcionava. Reconheceu o amor logo que o viu. Consciente do sentimento que sentira pelo homem que conheceu, distinguia nas suas formulações compreensão que não se tratava do homem que amava, mas do homem que escolheria para viver. Compartilhou a tragédia que viveu, deu sossego e desassossego.
Experimento o prazer da permissividade as pessoas que habituou a chamar de amigo. Eram pouquíssimas pessoas davam para morar nos dedos das mãos. Mas o pouco sempre fora muito para ela. A pequena quantidade de alma que o novo habitat proporcionava finalmente trouxe felicidade para a catedral da sua alma.
As pequenas ambições que detinha simplificavam em 22 livros que adquirira num sebo. Quem olhasse para aquela menina acharia cômico à loucura do sentido da felicidade para ela. Quem poderia julgar seus desejos? Já que estava feliz com o suficiente que conquistara. Naquela noite retornou para casa, para família que construiu, naquele momento a mudez teve a expressão do sorriso.

(Alan Félix)

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Anjo Caído em Busca de Luz e Fé


Sou sua imagem e semelhança
nasci pra ser perfeito
mas não compreendi direito.

Pisei na nuvem errada
cai no céu vermelho
preso entre ideologias
continuo com minha filosofia.

O messias do lado errado.

Faço minha jornada
em busca de luz e fé.

A vela não ilumina meu caminho,
a prece só atrapalha meu destino
só um errante em busca de luz e fé.


(Alan Félix)

domingo, 8 de agosto de 2010

"Ninguém Vai Nos Segurar"


Mostra-me o dente amarelado
e o copo pelo meio da cachaça.

Embebeda tua alma desgraçada
e segue rodopiando pela calçada.


Chama de puta tua amada
e dar uma bofetada na descarada.

Engole aquele pão com água
e agradece o banquete que te farta.


Segue solitário na tua estrada,
somente quem te acompanha é a garrafa.

Esquece o cachorro que te afaga,
na vida nem um gesto de amor lhe acalma.



(Alan Félix)

sábado, 7 de agosto de 2010

Terreiro



O chão do quintal tremia
e os trovões que rogam, rugiam.

A bandeira firme erguia
a fé branca aos céus.

O cântico dos atabaques,
e uma velha a saudar "Kawô kabiecilê!"..

(Alan Félix)

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Tudo que Escrevo


Tudo que escrevo é líbido. É uma essência erótica que evapora no dedo. Tudo que escrevo é orgasmo. É a arte de manipular os movimentos da mão num voo prazeroso no papel. Tudo que escrevo é masturbação. É a técnica frenética de pulsação da poética latente. Tudo que escrevo é espasmo. É a conturbação da mente na ejaculação de ideias. Tudo que escrevo é alma. Por isso que morro em cada ponto final.

Alan Félix

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Tormenta




O que adianta o mar
si as lágrimas são salgadas
e tempera minha pele fraca.

Quantas tormentas virão
até naufragar as caravelas do meu dia.
Quero a tranquilidade dos rios
e doçura de suas águas a banhar minha face.

Não quero os trovões da violência,
os tsunamis da vaidade,
os recifes da insensatez.

Tenho a fragilidade dos barquinhos de papeis machês,
a candura das baías calmas,
e a festividade das marolas a lavar os pés.

(Alan Félix)

domingo, 1 de agosto de 2010

Nove Meses


Hoje atônico brinco de deus.
Dentro daquela mulher crio o mundo,
homem e o amor.

Aprendi com a palavra à expressar
os uivos dos demônios.

Aprendi com a vida à reproduzir vida,
a criar como deus, a amar como homem,
e chorar como criador.

Dentro daquele oceano de mulher,
mora um deus, um poseidon, uma criança.

Durante nove meses o pecado fica divino,
e as águas que o cercam secam,
e a inocência vem ao mundo - e chamo filho!

(Alan Félix)