sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

O casaco vermelho

Era domingo quando ela faleceu no andar superior da casa.

O quarto com suíte e varanda para o jardim botânico da cidade tornou-se o sepulcro da nossa vida. Uma voz gritava das paredes, dos móveis e cômodos da casa. A voz ecoava por cada microfibra da cortina, por cada intervalo existente no cimento do piso, a voz dizia – Até que a morte nos separe! – aquela voz ceifadora com sua balsa flutuante visitando meu lar, invadindo meu quarto sem autorização e carregando a alma sem cobrar as duas moedas postas nos olhos pelo serviço de transporte.

Hoje completa dois meses que perdi o amor, hoje completa dois meses que vago pelas ruas da cidade nos escombros da solidão, e a cada passo que ensaiava me recordava do amor que tive, da mulher que amei.
Há quatro meses atrás, estava sentado num restaurante tomando vinho. O vinho era suave como a manhã que se desenhava no céu. O relógio derramava o tempo por segundos, e eu bebendo das horas na espera da mulher de casaco vermelho.

A mulher do casaco vermelho possuía uma mania de cantar enquanto preparava o jantar que degustava toda vez que chegada do trabalho. Havia um ritual executado pela mulher que era cantarolar uma canção ensinada por sua avó. Deus, sabe o quanto irritava ouvir aquela voz desafinada e depois me alimentar com aquele jantar.

Lógico que possuía uma amante em minha vida.

E naquele exato momento criei coragem para contar à mulher que iria me divorciar dela e viver com minha amante. A taça de vinho devorava minha aflição, angustia e sei lá que sentimentos mais boiavam naquela taça.
Ouvi a canção predileta da mulher, seu andar barulhento e o maldito casaco vermelho beijando a velha grade da entrada do restaurante. A única reação foi engolir todo vinho, respirar fundo. Já era tarde, ela sentou na mesa. Olhei fixamente nos olhos oblíquos.

A coragem havia deslizado do meu corpo e corrido até a saída de emergência mais próxima, acenando para mim e dizendo: – Fudeu! Certamente, é o que eu teria feito numa situação semelhante. No entanto, a vida é uma surpresa envolvida numa camada de chocolate com avelã.

A mulher estava diluviano na mesa, e como todo homem, perguntei friamente tocando sua face quente – O que aconteceu, amor?

Ela, respondeu:
- Hoje estive no médico, fui pegar o resultado do exame que fiz há alguns dias atrás, e o médico quando verificou o resultou, comunicou-me que estava com câncer em estado terminal.
O que aquela mulher acabará de dizer, penetrou meu corpo como projétil de munição. Rapidamente liguei para a amante e terminei o caso.

Comecei a cuidar da mulher, voltei a amar-la, a me encantar com a cantoria dela ao preparar o jantar, lia livros e poemas na cabeceira da cama até ela dormir. Todo esse processo amoroso, permitia-me ser um marido melhor, a perceber o quanto amava aquela mulher.

A doença agravou com o tempo, e numa manhã nublada de domingo, enquanto estava lendo ‘o caderno de Noah’, o seguinte trecho:

“Um começo vulgar, algo que seria esquecido se tivesse vindo de outra pessoa qualquer que não ela. Mas quando lhe apertou a mão, e cruzou aqueles espantosos olhos esmeraldas, soube antes de respirar de novo que ela era aquela por quem poderia passar o resto da vida à procura e nunca mais voltar a encontrar. Assim lhe parecera, tão boa, tão perfeita, enquanto uma brisa de Verão soprava entre as árvores.”

A brisa entrou pela brecha da janela, beijou a face da minha esposa, ajeitou seu cabelo e continuo pelo corredor da casa, enquanto estive profundamente mergulhado na leitura, recitando cada palavra que voava sutilmente até o ouvido dela. Pressenti um silêncio cortando o ar, e uma mão gélida e imóvel a segurar o joelho da minha perna.

A morte havia a levado com a brisa.

Um mês passou após a morte da mulher que amei e amo, mais cedo estava na feira comprando pêra, quando ouvir aquela canção e o casaco vermelho, corri em direção da mulher e ao aproximar notei que não era minha esposa. Retornei para casa, sentei no quarto, a cadeira confortante na qual lia, voltei a ler o trecho do livro, “[...] soube antes de respirar de novo que ela era aquela por quem poderia passar o resto da vida à procura e nunca mais voltar a encontrar. Assim lhe parecera, tão boa, tão perfeita, enquanto uma brisa de Verão soprava entre as árvores.

(Alan Félix)

5 comentários:

  1. Como você pôde fazer isso comigo, hein?

    Ah, Alan, se você soubesse como esse texto mexeu comigo, eu acho que não poderei nunca lhe contar, expressar como estou me sentindo. Talvez seja porque hoje estou toda chuva, mas eu desaguei agora. Que texto belo e triste. Poxa. Por que o amor sempre é sofrer, hein?

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  2. Eu queria não chorar tanto, não sentir tanto. Ser uma moça sem coração, para não doer.

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  3. Acredito que a postagem coletiva tenha dado certo. Rendeu bons textos, alguns suspiros (ai, ai). Então, quero propor uma nova postagem coletiva. Para quarta-feira. E estou avisando com antecedência para que todos nós postemos juntos.
    O tema é: Kiss me.
    Baseada na música da banda Sixpence None the Richer. Sempre achei essa música linda e acho que poderíamos tirar um proveito enorme dela. Aguardo contato com a confirmação da postagem.

    adm.pamelamarques@gmail.com
    Se quiserem podem me add no Gtalk. Passo o dia inteiro online.

    E avisem também que a postagem é livre, quem quiser pode entrar na brincadeira.

    Beijo doce :*

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  4. A morte tem dessas coisas, tem sempre que separar e levar nossos corações a viverem de saudade do que passou e do que poderia ter vindo. Embora a morte seja certa, não estou preparado para deixar de respirar, não agora!

    Charlie B.

    Ps. Postei sobre Noites de um verão qualquer!

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  5. Ah, postou por último, deixou em evidência.. Que deleite!!!

    Quando li pela primeira vez, no word ainda.. Esboçei um daqueles sorrisos de lado a lado e soltei um: CACETE!
    Gosto tanto do que sai de você, Alan.
    Texto como este me deixa orgulhosa, orgulhosa por conhecer quem o escreveu.
    É um prazer desfrutar desses textos raros que só saem de nós "pobres escritores" uma vez por ano, às vezes.

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